Quando as mulheres morrem

A violência contra as mulheres é uma sombra que nos persegue. Como diz Regina Navarro Lins, no livro “A cama na varanda”, a ontologia feminina ainda está sob o domínio dos homens. Nisso, a subjetividade do ser feminino, como ente de si, não pode existir sem a lógica marcada pelo poder masculino. Dito assim parece tão absurdo. Mas se for visto o quadro da violência, entendemos o massacre a que as mulheres estão submetidas.

 

Todavia, como é mesmo que se desenhou uma sociedade tão machista como é essa em que vivemos? Como se pratica socialmente esse massacre e nada se faz? Bom, não há respostas tão simples. Não há respostas tão fáceis. É preciso dizer, como afirma Regina Navarro Lins, que a identificação do corpo da mulher como um corpo passível de domínio, significa dizer que as mulheres são, em si mesmas, perigosas.

 

A violência contra as mulheres tem suas bases num campo de significado muito mais denso que meramente uma expressão de nossa época. Com a formação da cultura ocidental, a partir do marco judaico-cristão, é sustentada uma perspectiva conservadora: o corpo da mulher foi sempre o alvo do controle institucional. Esse controle foi exercido pelas autoridades que necessariamente eram masculinas ou designadas por homens. A primeira instituição para esse domínio estava nas sendas religiosas. As práticas religiosas tanto judaicas quanto cristãs (católicas primeiro, depois protestantes também) não eram rituais nos quais as mulheres poderia tomar parte.

 

Como a formação moral do mundo ocidental dependeu muito desse ideário, o corpo das mulheres era visto como passível de ser habitado pelo demônio. Por isso, sobretudo, a história ocidental está repleta de relatos de mulheres queimadas. Essa visão de mundo ainda repercute até agora, claro com menos vigor, mas ainda vigente nas mentes dos que acreditam na matriz religiosa judaico-cristã. Ainda associamos honra ao domínio do corpo. Ainda associamos caráter ao controle da sexualidade.

 

Por isso, aceitamos, por exemplo, que a mulher, sua subjetividade e sua ontologia, seja objeto de permuta, como o é um ritual de casamento, sob essa lógica religiosa, do mundo ocidental. O casamento é, portanto, um momento em que o pai (dono da filha, senhor de seu corpo, de sua honra) entrega esta a um outro homem (que passa a ser dono, senhor de seu corpo, de sua honra). Não quero aqui dizer que não há beleza nesse ritual. Há beleza, há amor, há paixão, há esperança. Todavia, o corpo a ser trocado é o da mulher. Não se negocia o corpo do homem, porque este, na cultura ocidental, é um corpo dado, existe em si.

 

Quando uma mulher é assassinada, por exemplo, porque supostamente fora pega num caso de amor fora desse modelo de troca, algumas pessoas ainda acreditam que a morte é para lavar a honra. Outros tendem a minimizar o crime responsabilizando a vítima. Além disso, há os estupros dentro do seio familiar, há a usurpação dos corpos de meninas por parentes. Ninguém fala disso abertamente. Há um imenso silêncio sobre as violações costumeiras que as mulheres sofrem. Sem falar que muitas, mesmo vítimas, acreditam que foram vitimadas por sua própria culpa.

 

O fim da violência contra as mulheres depende de uma mudança que é ao mesmo tempo radical e simples. Radical, porque temos de mudar os rumos de muitas coisas, como o assentamento moral que paira sobre a noção de masculinidade do sagrado na cosmologia judaico-cristã. Simples, porque basta que a noção de gênero seja discutida nos espaços de formação, como é a escola, por exemplo. Então, como se argumenta aqui, a solução para esse imenso problema social, é aceitação, como explicou a filósofa Simone de Beauvoir, de que as mulheres não nascem naturalmente como mulheres. Essa fabricação do corpo humano para que se torne mulher é uma atividade que vai beneficiar os homens, que tendo nas mulheres a possibilidade de gerar herdeiros de si (do homem, do pai, dai vem o sinônimo de patrimônio), precisam conviver com as mulheres, mas, não podem aceitar que estas sejam senhoras de si, e por tanto das criações delas, os filhos.

 

Aqui reside, talvez, o traço mais perverso da violência contra as mulheres: o domínio do corpo das mulheres. Esse domínio, reitero, é tão forte e sutil na elaboração porque conta com um panteão sagrado no qual é a imagem do homem que é associada ao sagrado. Nessa perspectiva religiosa, Deus é pai, sendo pai é homem, sendo homem emana de si a origem do poder e da força e mesmo que não possa gerar um filho em si próprio, precisa da mulher, mas esta é vista apenas como invólucro de um corpo que cresce nela, mas não é dela, nem dela descende epistemologicamente. A mãe, sendo mulher, é um suporte, não é agência, não é desígnio de si.

 

Para superar a violência contra a mulher, urge superar a noção de subalternização que explora e violenta a feminilidade. É preciso reconhecer que o machismo está arraigado, como medida moral, profundamente nas práticas sociais, como é a teologia judaico-cristã, como é a prática escolar, como é a exploração dos corpos das mulheres. As mulheres precisam de uma sociedade que as veja como pessoas. As mulheres precisam ser quem elas quiserem ser, livremente. As mulheres precisam ter liberdade para viver sua sexualidade como bem entenderem. As mulheres precisam de liberdade.

 

Adriano Castorino é professor da Universidade Federal do Tocantins, doutor em Ciências Sociais/Antropologia.

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