Fardas, fuzis, togas e canetas

Não se faz justiça com a prática da injustiça. Não se constrói uma sociedade justa com a prática de ilegalidades, arbitrariedades e abuso de poder

Em 1964 a democracia brasileira sofreu uma intervenção militar, amplamente apoiada pela sociedade. É claro que houve focos de resistência, porém poucos e insignificantes diante da conjuntura nacional de então.

 

A justificativa da intervenção militar foi a necessidade de proteger o país da onda do socialismo Marxista-leninista, em sua primeira etapa de implantação: o comunismo, que estava ameaçando parte de todos os continentes. Era a revolução comunista que estava em marcha, capitaneada pela China e pela então Rússia (URSS), que hoje não existe mais.

 

Pois bem, o governo militar durou pouco mais de vinte anos e hoje as forças armadas pagam um preço enorme por essa intervenção: salários vis, equipamentos sucateados e a pouca relevância nacional que ocupam na história do país desde a promulgação da constituição federal em 1988.

 

Na ditadura, ninguém conseguia soltar uma pessoa que fosse presa por ordem de um coronel. Nem um general, em muitos casos, mesmo querendo, conseguia reverter tal prisão. A pessoa era presa e a chave da cadeia jogada fora.

 

Hoje, pessoas estão sendo presas em operações conjuntas da polícia federal, ministério público federal e justiça federal, como a operação LAVA JATO e tantas outras que tem se espalhado Brasil a fora. Quem advoga na esfera penal sabe o absurdo que essas prisões representam em relação às garantias constitucionais e a afronta às garantias penais conquistadas a duras penas na história brasileira.

 

O princípio da inocência presumida, previsto no art. 5º, inciso LVII, da CF/88 foi varrido do direito penal brasileiro. Tem funcionado mais ou menos da seguinte forma: “fulano de tal é um ladrão, disso todo mundo já sabe. Deixa ele preso”. Então você pergunta: e as provas contra ele? Vem a resposta: “Bem, isso nós ainda estamos apurando, como todo mundo sabe que ele é um ladrão mesmo, depois acabamos provando que ele é o culpado”.

 

E o que dizer do Código de Processo Penal, no art. 312 que estabelece os casos em que uma pessoa pode ser presa: garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal? Todas essas previsões legais passaram a ser interpretadas de forma singular por cada juiz, nos moldes das decisões coronelescas do regime de 1964, onde a vontade do agente público prevalecia sobre toda e qualquer disposição legal.

 

Era mais ou menos o seguinte: “senhor coronel, o senhor não pode prender o fulano de tal”. E a resposta vinha: “posso sim. Quem manda sou eu. Está preso. Vou averiguar. Depois decido se ele cometeu o crime ou não”. Hoje o judiciário brasileiro está fazendo a mesma coisa, prendendo quem bem entende para depois averiguar se o fulano de tal deve ser mantido preso ou não. Tanto é verdade que as prisões temporárias (5 dias) tem se alastrado, para logo em seguida o preso ser libertado. A pessoa é encarcerada tão somente para prestar depoimento, o que também poderia ser resolvido com uma simples intimação.

 

Atualmente, a prisão temporária e a preventiva substituíram a antiga e famosa prisão para averiguação. E o pior se repete: a grande massa popular e a mídia brasileira se encarregam de legitimar tais atrocidades.

 

E o que dizer das famosas conduções coercitivas? A pessoa tem endereço certo, residencial e profissional. Nunca foi intimada a comparecer perante a autoridade policial ou judiciária. Não mais que de repente, acorda às seis horas da manhã com a polícia federal e as redes de televisões em sua porta com um mandado de condução coercitiva. É o circo institucionalizado. É a banalização dos valores morais e da dignidade do ser humano. Expõe o preso ou o conduzido coercitivamente pelo simples prazer do autoritarismo. Envergonha a pessoa perante seus vizinhos, amigos e familiares sem a menor necessidade. Um simples e mero mandado de intimação substituiria todo o aparato policialesco e midiático que hoje está instalado no Brasil.

 

E não para por aí, o próprio Supremo Tribunal Federal, em decisão recentíssima, numa decisão de 6 votos a 5, decidiu que os condenados em segunda instância já devem iniciar o cumprimento de suas penas, independentemente de haver recurso. Essa decisão, ao que tudo indica, é um dos efeitos não positivos da operação lava-jato. O STF mudou o seu entendimento histórico, jurisprudencial, doutrinário, a respeito do assunto, para ergastular os condenados pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais. É um retrocesso sem precedentes.

 

Tudo isso, com o mesmo argumento de 1964: fazer uma limpeza na sociedade. Para tanto, tudo é válido. Garantias constitucionais históricas tem sido afrontadas diariamente. Garantias penais, conquistadas ao longo da história do direito pátrio e estrangeiro, tem sido suprimidas do direito brasileiro. Vejo tudo isso com muita preocupação e tristeza. Não faço aqui juízo de valor sobre a culpabilidade ou inocência de quem quer que seja, mas tão somente faço juízo de valor sobre as arbitrariedades e as afrontas ao direito que estão sendo cometidas reiteradamente e sistematicamente, contando com o aplauso popular e cenas midiáticas. Estamos assistindo, diariamente, verdadeiros linchamentos públicos.

 

Não se faz justiça com a prática da injustiça. Não se constrói uma sociedade justa com a prática de ilegalidades, arbitrariedades e abuso de poder.

 

E mais, a fatura de todas as arbitrariedades que tem sido cometidas pela polícia federal, ministério público federal e judiciário, vai chegar à porta desses poderes, da mesma forma que chegou para as forças armadas brasileiras. Tudo isso é muito ruim para o país e para as instituições.

 

De igual modo que as prisões decretadas por coronéis dificilmente se revogava, hoje, as prisões decretadas por juízes, dificilmente são revogadas. Não porque não haja direito, mas porque o linchamento público, o julgamento antecipado e a aplicação da pena sem a sentença tem se tornado a prática do cotidiano.

 

As fardas foram trocadas pelas togas e os fuzis pelas canetas.

 

É isso. 

 

Marcelo Cordeiro é advogado, pós-graduado em administração pública, mestrando em Direito Constitucional pelo IDP, ex-juiz do TRE/TO. Escreve toda semana na coluna Falando de Direito.

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