A Militarização do Ensino

Crédito: Manoel Lima

Nas últimas duas décadas um fenômeno tem se intensificado no Brasil: a militarização do ensino. Por todo o país redes públicas de Educação têm repassado a militares a gestão de escolas e a coordenação de processos pedagógicos. Só para se ter uma ideia, das 1.050 escolas estaduais de Goiás, 71 são, por lei, militarizadas, o que corresponde a 6,7% do total de escolas. Já no Tocantins, das 530 escolas estaduais existentes, 8 já são militarizadas, sendo que 6 foram criadas somente nos últimos dois anos.

 

Há dois grandes argumentos para se iniciar um processo de militarização de escolas: o da melhoria da qualidade do ensino e o da construção de uma sociedade mais segura num futuro próximo, pela formação de pessoas com espírito cívico. Porém, a realidade tem escancaradamente mostrado que ambos os argumentos são falaciosos. Em que pese haver uma identificação direta entre bom desempenho escolar, especialmente medido pelo IDEB, e escolas militares, o mérito disso não pode ser atribuído diretamente ao processo de militarização do ensino.

 

Por regra, as escolas militares constituem o seu público de alunos mediante um processo de seleção que tem como principal critério o bom desempenho acadêmico pregresso do aluno. Ou seja, para conseguir uma vaga numa escola militar, o currículo estudantil precisa ser, no mínimo, razoável, com boas notas e com boa conduta. Ora, acontece que o ato de seleção numa rede pública contraria legalmente os princípios da isonomia e da universalização, pois retira do aluno o seu direito de escolher ou de se matricular numa escola que seja a mais próxima de sua residência, por exemplo. Por outro lado, ao selecionar notáveis, que geralmente estão relacionados com famílias de nível socioeconômico bom e muito bom, o sucesso do processo de ensino-aprendizagem é de estrita responsabilidade dos alunos, dos professores e da família, de modo que a sua reunião em qualquer outra escola (por exemplo, numa existente num contexto de periferia urbana) produziria o mesmo resultado.

 

O argumento apresentado aqui não tem a intenção de desqualificar os esforços desprendidos pelos militares no processo de gestão de escolas. O que se pretende mostrar é que tem havido um equívoco político na história recente do país e, especialmente, de Goiás e do Tocantins, que só reforça duas mazelas que tanto intencionamos superar: as desigualdades socioeducacionais, por um lado, a partir da segregação e da discriminação de alunos que não podem usufruir de determinada escola por causa de um currículo considerado fraco; e o aumento do índice de violência e de criminalidade, por outro, pela subtração de militares operacionais para a atuação em escolas.

 

Não se trata de desconsiderar o poder da “ordem” e da disciplina como ferramentas pedagógicas. De fato, para determinados perfis de crianças e jovens, esses dois fatores são fundamentais para produzir a significação necessária da relação ensino-aprendizagem. Porém, por regra crianças e jovens aprendem melhor num espaço que lhes proporcione liberdade e o uso da criatividade sob a mediação pedagógica, o que se torna possível a partir de profissionais que investiram seus estudos e acreditaram na carreira que é própria do magistério. São professores habilitados para atuarem em áreas específicas do conhecimento, na orientação educacional e na supervisão. Profissionais que durante a sua formação estudaram fundamentos pedagógicos, didática de ensino, Psicologia do Ensino, legislação educacional e gestão escolar. São esses profissionais que, em regra, pela formação que lhe é própria, conseguem garantir que a escola seja esse espaço de liberdade, porém, com determinada ordem que garanta o objetivo comum da aprendizagem e da criação para um público que é diverso e que aprende com base nessa diversidade.

 

Assim, teoricamente não há nada melhor do que uma equipe de professores para fazer a gestão escolar e a sua devida orientação pedagógica. Da mesma forma, nada melhor do que um militar atuando na sua função precípua, que é a Segurança Pública. Em outras palavras, poderia se dizer: escola é lugar para professor e a garantia da segurança é o papel do militar! A militarização do ensino não tem resolvido os problemas básicos da Educação, que se assentam sobre três pilares fundamentais. O primeiro, como já destacado, é a desigualdade socioeducacional, sendo que a sua superação demanda investimentos na melhoria do transporte escolar, da alimentação escolar, da infraestrutura escolar, dos espaços de leitura etc. O segundo se refere à melhoria dos indicadores de proficiência, o que só é possível a partir do momento em que os alunos de fato aprendem. Mas para que isso ocorra, é necessário, por um lado, superar a desigualdade e, por outro, investir na formação continuada de professores. Por fim, o terceiro pilar relaciona-se com essa formação continuada, especialmente na didática de ensino e com atenção particular aos professores de Português (responsáveis pela aprendizagem de leituras de textos e contextos) e de Matemática (responsáveis pela orientação ao raciocínio lógico).

 

Não obstante, a militarização do ensino também não tem resolvido o problema da Segurança Pública. Em Goiás, por exemplo, onde esse processo se intensificou a partir de 1999, a violência e a criminalidade só aumentaram. Nesse mesmo ano, o Estado figurava no ranking nacional de violência na 18ª posição. Já em 2017 ele apareceu na 4ª posição. Goiânia, a sua capital, foi considerada em 2014 a 23ª cidade mais violenta do mundo. De acordo com o “Monitor da Violência”, pesquisa realizada pela USP em parceria com o G1/Jornalismo da Globo, em 2018 os crimes violentos têm aumentado significativamente mês após mês em Goiás. Já com relação ao Tocantins, o portal T1 Notícias destacou em matéria de 07/06/2017 que o Estado é o terceiro do país com o maior crescimento do índice de violência, segundo o Atlas da Violência 2017, produzido pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, da Presidência da República. Obviamente, falta efetivo policial para corresponder a tamanha demanda de combate ao crime e à violência, ao mesmo tempo em que falta ainda espírito cívico e de paz para a juventude.

 

Precisamos aprender com os militares o que está dando certo nas escolas em que exercem a gestão, e há muita coisa boa. Mas se há um desejo social de melhorar a Educação, esse movimento precisa ser endógeno, de dentro para fora, e não exógeno, de fora para dentro. Não é possível se fazer vistas grossas para as reais necessidades da Educação brasileira e tocantinense, como as que já foram apontadas acima. É preciso que os governos encarem de frente esse desafio, reestruturando o processo educacional com as forças que são próprias da Educação. Nesse sentido, é muito importante que a sociedade não se deixe levar pelo discurso fácil e equivocado de que a militarização do ensino é a solução aos problemas que são próprios da Educação e da Segurança Pública. É fundamental que se observe a realidade e se aprenda com ela, da mesma forma que é fundamental banir das promessas de campanha tamanha desventura social.

 

Adão Francisco de Oliveira é historiador e sociólogo, doutor em Geografia, professor da UFT e ex-Secretário Estadual de Educação, Juventude e Esportes do Tocantins.

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