Coringa, uma bomba que merece ser vista, por Edy César

“É impressão minha ou o mundo está ficando mais louco?” – Arthur Fleck.

Crédito: Reprodução

Se a multidão é um barril de pólvora, Coringa de Todd Phillips certamente é a faísca. Com uma premissa antissistema, a indústria cultural estadunidense tenta novamente explicar a origem do icônico vilão da DC, um vovô de 90 anos que aterroriza Batman e Gotham City.  

 

  

De início, Todd Phillips, diretor de The Hangover, surpreendeu o mundo geek quando foi escalado para ser o maestro de filme solo do Coringa. Apesar das desconfiança inicial que teve, Phillips ressurgiu quando apresentou a versão final do filme, quando conseguiu amarrar uma ótima direção de arte, que remonta Gotham do anos 80, um roteiro que liga diversos elementos da cultura pop e do maniqueísmo político,  uma fotografia primorosa e a melhor atuação masculina do ano. O resultado: o filme mais visceral, anárquico e chocante de tempos.

 


 

 O longa tem uma direção extremamente afiada e meticulosa, um tom quase épico, no qual as locações casam com os conceitos do filme, nada lá está por acaso, existe por exemplo uma enorme escadaria que Arthur deve subir, depois de mais um dia de fracasso em seu trabalho, se arrastando degrau a degrau, assim como Rocky Balboa se arrastava para completar a subida das escadarias.


 

 

A fotografia da película tem uma paleta de cores marcante, ainda mais para um filme ligado aos quadrinhos, que divide a obra em três tons distintos, com um início em tom pastel, ponto que nos é apresentado Arthur Flecker, um comediante paupérrimo com transtornos mentais, que deve lidar com sua insignificância numa sociedade capitalista moderna. 

 


 

Após essa sequência, o filme passa para cores mais quentes e vibrantes, isso para trazer às telas o recém surgido Coringa, um homicida que cansou da forma que o mundo se organiza e resolve colocar fogo no picadeiro. Por fim, surgem cores frias e claras, não para trazer a paz e sim a doença incurável trancafiada no Asilo Arkham.    


 

Joaquin Rafael Phoenix, que tem escolhido a dedo todas as obras que participa, surge para provar que é o ator mais talentoso e versátil de sua geração. Phoenix, em sua preparação, se trancou em um hotel e perdeu duas dezenas de quilos, uma deterioração corporal que lembra, não por coincidência, o papel de Christian Bale em The Machinist(2004).

 


 

Mas, muito além da dieta low carb de Phoenix, o ator carrega o filme nas costas, quase um solo, onde aparece em praticamente em todas as cenas, sua atuação visceral e verossímil lhe dá o crédito de ser uma das melhores do ano. Phoenix cria uma versão própria do vilão mais sociopata dos quadrinhos, o que transforma o Coringa em um ser quase real, com isso os espectadores passam a ter empatia pelo vilão e até mesmo torcem por desfecho feliz para o vilão.   

 

As redes sociais tendem a medir as coisas, e a comparação entre Heath Ledger  e Joaquin Phoenix tem ganhado força, como se fosse possível, uma vez que o Coringa de Ledger era uma peça na grandiosidade do Batman, Cavaleiro das Trevas, já o Phoenix teve que ser todo o mecanismo na obra de Phillips, quando construiu um personagem do zero até chegar à apoteose final do longa. Heather fez sem dúvida o Coringa definitivo do cinema, já Phoenix é um ator mais completo e complexo, o que eleva o vilão da DC a um novo patamar na cultura pop.  


 

A película possui um vertente claramente antissistema, quase anarquista, nele são contrastados o luxo e as extravagâncias da classe dominantes com as condições do povo, que devem sobreviver com pestes de ratos, greves, falta de emprego e desnutrição. Um enredo que remonta a França revolucionária do século XVIII, onde a nobreza se fartava de banquetes e vinhos e a classe trabalhadora tinha que comer pão com serragem, e toda vez que o estrato social e tensionado ele tende a se romper, a arte imita a realidade.

 


 

O longa também se dá ao trabalho de discorrer sobre nossa própria insignificância no mundo e de nossas dificuldades de aceitarmos um papel secundário na malha social, com uma pegada niilista a lá Nietzsche leva a cabo a ideia de viver em um planeta onde as pessoas são resumida a meros espectadores e consumidores. Uma frase já célebre que o roteiro apresenta é a fala  de Arthur Fleck com sua psiquiatra, quando diz : “Durante toda minha vida, eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo. E as pessoas estão começando a perceber.”  


 

O filme traz uma série de referências a outros filmes, quase pequenas homenagens. Por exemplo Taxi Driver, filme de Scorsese, que conta a trajetória de Travis Bickle, um jovem que comeu o pão que o diabo amassou e resolveu tocar fogo no circo. Também não podemos esquecer Clube da Luta(1999), que conta a história de um grupo anarquista que resolve derrubar o sistema.  Interessante que todas essas referências são de obras acusadas de incitar a violência da juventude e de serem subversivos, mas desconsiderem essa “tese”, pois a arte não é causa da violência e sim uma das soluções.  



 

Todos esses fatores deixam o Coringa de 2019 como marco definitivo da cultura pop, um filme que dialoga com os principais problemas sociais da modernidade e de seu o modo capitalista de pensar, aqui a violência é apenas o pano de fundo de questões maiores, que as novas gerações terão que lidar. 

 


 

“Pare de rir. A cidade toda está em chamas por sua causa.” – Murray Franklin.

 

“Eu sei. Não é bonito?” – Coringa.

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