Réplica

Em artigo de opinião, o professor universitário comenta a vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais, discordando do ponto de vista do advogado Marcelo Cordeiro, emitido em outro artigo

Escrevo este artigo como réplica ao texto “Vitória da mentira”, de 27/10/2014, de Marcelo Cordeiro. Quando li aquele texto pude acompanhar atentamente as palavras que delineavam a filosofia de vida e o pensamento de seu autor. Partindo da premissa de que o direito a manifestação é livre e a divergência de opinião é o marco basilar da democracia, escrevo uma opinião que diverge da exposta por Marcelo Cordeiro.

 

Há uma frase no texto citado que afirma que a vitória de Dilma se deu a partir dos votos dos menos esclarecidos. Ora, para começo de conversa essa frase já exprime um ranço tão pérfido de alguns setores “mais esclarecidos” da sociedade. Primeiro, porque há uma homogeneização do que seriam os pobres, os menos esclarecidos, que nordestinos e nortistas são todos a mesma coisa. Esse juízo de valor é amparado em pressupostos a partir dos quais uma parcela da população, auto intitulada escolarizada, culta, branca arvora para si o direito de decidir o que é melhor para o todo, nesse caso, o todo é o Brasil.

 

Noutro momento do texto de Marcelo Cordeiro, o autor insidiosamente afirma que o PT dividiu o Brasil. Essa frase apaga os séculos de divisão social entre a casa grande e a senzala, entre os da corte e os das vilas, entre os mais ricos e os mais pobres. É uma sandice uma afirmação que nega a história, que a partir do ódio explícito a um partido político se possa negar o imenso fosso social a que estamos submetidos desde a espoliação colonial. Talvez o que se tem hoje é que nos governos do PT essa imensa divisão varrida o tempo todo para debaixo do tapete da história tenha vindo à tona. Por que somente nos governos do PT o debate acerca do trabalho análogo a escravidão ganhou força? Por que somente agora a violência contra as mulheres foi criminalizada? Por que a PEC das domésticas tenha sido aprovada somente agora?

 

Talvez seja bom lembrar ao leitor, e também a Marcelo Cordeiro, que há dois autores, brasileiros, ainda do ido século XX que discorrem de forma contundente sobre divisão social no Brasil e ambos os autores nordestinos, Josué de Castro e Gilberto Freire. É sempre bom qualificar melhor a opinião para não destilar um ódio gratuito, quase pueril. Política é coisa séria. Não se pode negar o direito a ninguém de tecer críticas a quem quer que seja, todavia é bom ter um zelo pelas categorias discursivas, pelos argumentos, conhecer as bases do pensamento sobre o qual se direciona a crítica. Por isso, reitero aqui, para falar de divisão social no Brasil seria bom ler esses dois autores antes de qualquer coisa.

 

Quando em outra parte do texto o autor diz que a vontade do eleitor de baixa renda foi corrompida pelo medo, fica claro que para o autor os eleitores de baixa renda não têm opinião crítica, não sabem de si, não sabem decidir, são marionetes. Ora, é um argumento sobremaneira prepotente porque há um princípio claro nas eleições: os eleitores tendem a votar segundos seus interesses imediatos e de médio e longo prazo. Por exemplo, os eleitores que votaram no PSDB o fizeram com interesses que são, na democracia, legítimos. Tinham interesses de ter um governo com o qual se identificavam, em maior ou menor grau; tinham interesses em propor uma maneira de governar o Brasil; tinham interesses de manter sua maneira de ver as coisas.

 

Do mesmo modo os eleitores do PT. Votam com interesses, em especial porque parte significativa dos mais pobres nesses últimos anos pôde sonhar com luxos apenas destinados aos ricos. Pessoas como eu, e muitos outros, podem viajar de avião, passar férias nas praias do Nordeste, viajar para Miami, ter filhos em escolas de inglês, natação, balé. Isso era destinado apenas a alguns. Por isso, parte dos votos que deram a vitória a Dilma são votos que atestam uma verdade inconveniente, porque são votos dados por pessoas que agora, em condições de igualdade, podem tomar parte na democracia, decidindo por si mesmas o melhor para suas vidas. Esse é um voto sem revanchismo, sem mágoa, sem o crivo do etnocentrismo que tanto machuca nosso povo.

 

É importante que se tenha em mente que o que as mudanças sociais porque passa o Brasil vai cada vez mais colocar uma nova geografia. Já não é mais os senhores bandeirantes que mandam mais no Brasil; já não é mais os senhores do engenho que mandam no Brasil; já não é mais os bacharéis que mandam no Brasil. Por isso há tanto alvoroço. As mudanças sociais não mais podem ser descaracterizadas com argumentos rancorosos ou de etiqueta. Pobres podem comer, podem estudar, podem acessar bens de consumo durável, podem ter casa. O ódio ao PT é, em alguma medida, um ódio de classe.

 

Como disse Paulo Freire outro nordestino, em A pedagogia do Oprimido, a humanidade do opressor não pode tornar o oprimido humano. De modo que comparar a mínima redistribuição de renda, feita nos governos do PT, a compra de votos é atestar, uma vez mais um desconhecimento profundo das imensas desigualdades sociais brasileiras. Não se tem noticia que os filhos dos mais ricos optem por trabalhos de garis, de domésticas, de pedreiros. Por isso é lógico que vai haver rusgas quando os filhos destes, que por uma ordem naturalizada pelos que ocupam postos de poder, deveriam continuar a vida dos pais, tem oportunidade de estudar, de galgar postos de trabalho mais especializados vão concorrer com os que antes se julgavam donos do estado.

 

Por fim, quero citar um Paulista, que também apoiou o PT, Raduan Nassar. Autor cuja palavra é tão afiada que corta de uma tacada só. No livro Lavoura Arcaica há uma belíssima alegoria sobre a opressão. Há uma ética da opressão que fora vigente no Brasil e que agora se desmorona. Como no filme 12 anos de escravidão, de Steve Mcqueen, que há um emblema de como as classes que oprimem se sentem donas dos oprimidos. No Brasil, de alguma forma, menos do que era realmente necessário, os ricos não mais podem decidir pelos pobres e nem deles fazer uso, como o era na época da senzala.

 

Adriano Castorino é técnico em assuntos educacionais, professor, doutorando em ciências sociais/antropologia

 

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