“A Funai deixou de ser o papai grande das populações indígenas”, diz indigenista

Mineiro, da cidade de Ituêta, Fernando Schiavini é indigenista há mais de 40 anos

Crédito: Divulgação

Fernando Schiavini é escritor, roteirista de cinema, palestrante, idealizador da “Aldeia Multiétnica” - uma experiência de trocas culturais realizada na Chapada dos Veadeiros. Ele, que iniciou sua carreira no indigenismo em 1974, hoje fala que engana-se quem pensa que os indígenas estão despreparados, que são frágeis ou sucumbirão facilmente. “Uma tribo só se extingue quando seu último representante falece...”, assegura.

 

Mesmo trabalhando em um órgão do governo, a Fundação Nacional do Índio (Funai), a partir da década de 70 e aposentado desde 2015, tornou-se militante incondicional da causa indígena, atraindo para si demissões e perseguições pela ditadura militar, sendo anistiado em 1993. Às vezes sou tachado de polêmico. Este é um termo geralmente usado para classificar pessoas que não se situam à direita ou à esquerda” de qualquer ideologia, apenas dizem o que pensam e o que sentem. Deve ser por isso”, se autodescreve.

 

Na atualidade, apesar de aposentado, ele continua a militar em favor dos povos indígenas. Além de continuar escrevendo livros, textos e roteiros sobre a questão indígena, orienta grupo de pessoas que desejam conhecer as aldeias indígenas, pelo programa "Vivência Tribal Indígena".

 

 

 

 

Ele concedeu esta entrevista exclusiva ao T1 Notícias, na qual fala de política indigenista, capitalismo e adversidades, entre outros temas.

 

 

1 – A política indigenista no Brasil parece estar em reviravolta neste governo. Como você avalia isso?

 

R - Concordo com o que disse recentemente o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sobre uma tentativa deste governo de fazer uma “ofensiva final” sobre os povos indígenas e invadir seus territórios. Eu apenas acrescentaria: Eles resistirão.

 

 

2 – De onde vem essa certeza?

 

R - Veja bem. Os povos tribais, também chamamos de indígenas, são perseguidos desde que, há cerca de 7.000 anos, começaram a aparecer os primeiros feudos e moedas, o que teria ocorrido na Suméria, que deu início ao capitalismo. De lá para cá, os povos tribais que não se rendiam à escravização ou à incorporação ao “estado nação”, eram perseguidos e exterminados. O capitalismo detesta as diferenças culturais. Tudo deve ser homogeneizado, para que melhor seja controlado. No Brasil, a própria Igreja Católica decretou inúmeras “guerras justas” a povos que não se submetiam à colonização.

 

 

3– Mas, o mundo evoluiu. A rigor, esse tipo de perseguição não poderia mais acontecer.

 

R - Sim, é verdade, o mundo evoluiu, mas dentro do capitalismo. Ele é hoje 100% dominador e continua tentando eliminar todas as outras formas organizativas humanas. O capitalismo tem como meta avançar sempre, conquistar sempre, acumular sempre. Ele quer terras, ouro, madeira e mais o que tiver de comercializável. Se existe alguém querendo atrapalhar o acesso a esses “bens”, tenta-se tomá-los inicialmente pela diplomacia, se não for possível, é preciso eliminar o obstáculo. O capitalismo não aceita que outros povos não sejam capitalistas. E os povos indígenas não são capitalistas. Eles são tribais. Ou tribalistas, se preferir.

 

 

4 - Na prática o que isso representa?

 

R - As organizações tribais, inclusive por serem muito mais antigas do que o capitalismo, não possuem estado, moeda, escrita e propriedade privada, verdadeiros pilares do sistema dominante. Suas organizações, baseadas nas relações de parentesco e reciprocidade, permitem uma perfeita distribuição de bens entre todos da comunidade. Não existem classes sociais. Não existe o poder em si, mas o prestígio de líderes que saibam costurar o consenso. As comunidades indígenas são células autônomas dentro de uma mesma etnia. Se uma liderança instituída em uma comunidade decide aproximar-se demasiadamente do mundo capitalista, sempre haverá outro líder que o conteste, que irá formar uma nova comunidade, que rejeitará categoricamente qualquer coisa ligada às propostas que provocaram a cisão. Sempre foi assim.

 

 

5 – Recentemente o líder indígena Raoni Mentutire declarou que também lutou contra iniciativas dos governos petistas. Como você vê essa declaração?

 

R - Raoni é o maior símbolo vivo para os povos indígenas e suas organizações. Representa o que existe de mais autêntico em identidade indígena e de resistência guerreira. Para muitas pessoas não indígenas ao redor do mundo ele também é um símbolo de resistência e proteção à natureza. Raoni citou os governos petistas, mas na realidade ele luta contra os desmandos do poder governamental desde a década de 1970, quando surgiu no cenário nacional. Ficou famosa uma foto sua puxando as orelhas do então ministro do interior da ditadura, Mário Andreazza, que desejava emancipar os povos indígenas. Enfim, como todos os indígenas falam sempre, a guerra para eles nunca acabou, desde 1.500. Sempre tiveram que se defender do poder dominante ou dos vizinhos, geralmente fazendeiros, grileiros, garimpeiros, etc., que querem suas terras.

 

 

6 - Você acha que, instrumentalizando a Funai como está fazendo, o governo alcançará com mais facilidade os seus intentos de explorar economicamente as terras indígenas?

 

R - Há muito tempo, a Funai deixou de ser o “papai grande” das populações indígenas, apesar de ainda ser uma forte referência para muitas comunidades. O máximo que o governo poderá alcançar com a instrumentalização da Funai é a morosidade ou paralização das demarcações de terras indígenas e o afrouxamento na proteção delas, coisas que, aliás, já estão acontecendo. Quanto às outras ações, relacionadas à produção ou projetos sociais, eles são quase simbólicos atualmente na instituição. De modo geral, as comunidades indígenas há muito não recorrem a ela para acessar recursos para essas ações. Utilizando-se de suas organizações formais, recorrem a outros mecanismos de fomento, nacionais e internacionais, para executar seus projetos. Agora, o que preocupa de fato é a situação dos povos ditos “isolados”, que nem imaginam o perigo que correm. Deveria haver uma articulação internacional, envolvendo etnias em contato, próximos a esses povos, para proceder a proteção a eles, sem esperar muito do governo. Caso contrário, poderemos assistir, em pleno século XXI, a extinção deliberada de populações que nem conhecemos direito.

 

 

7 - Você acha, então, que os indígenas estão mais preparados hoje para enfrentar as adversidades provocadas pelo capitalismo?

 

R - Claro que sim. Engana-se quem pensa que eles estão despreparados, que são frágeis ou sucumbirão facilmente. Penso ser mais fácil o capitalismo entrar em colapso, antes que os dominem totalmente. Uma tribo só se extingue quando seu último representante falece. Obviamente, o governo poderá ter sucesso em algumas comunidades que decidam aceitar as práticas que o atual governo propõe em suas terras. Mas, enquanto povos, eles continuarão resistindo. E eles estão por aí, fazendo cursos em faculdades, mestrados, doutorados, viajando para o exterior, participando de encontros, seminários, de organizações indígenas nacionais e internacionais. Muitos se formam e retornam para suas comunidades. Conheço vários líderes de aldeias que são formados em cursos superiores. Adquiriram consciência crítica sobre o relacionamento de suas comunidades com a sociedade envolvente. Não será com promessas ou qualquer conversa mole que conseguirão convencê-los.

 

 

8 – Aparentemente, os povos indígenas obtêm mais apoio para suas causas no exterior, principalmente na Europa, do que no Brasil. Como se pode explicar isso?

 

R - Isso é real, os maiores apoios vêm dos europeus. No Brasil, apesar de estar aumentando a consciência sobre a importância dos povos indígenas em nossa genética, na formação da cultura nacional e na preservação ambiental, o apoio político aos povos indígenas é incipiente. Na verdade, infelizmente, os brasileiros não se mobilizam politicamente para praticamente nada e, portanto, pouco farão pelas populações indígenas. No meu entendimento, os europeus apoiam as populações indígenas brasileiras por duas razões: pela preservação ambiental, principalmente da Amazônia que, se destruída, afetará diretamente o clima no continente europeu; e pela simpatia histórica que alguns países possuem aos povos indígenas. Não se deve esquecer que países como a França e Holanda também se relacionaram com os povos indígenas no período colonial e, pelo que a história registra, de maneira bem menos violenta do que os portugueses.

 

 

9 - Volta e meia o governo acusa as ONGs europeias de agentes de países que pretendem dominar a Amazônia e explorá-la economicamente. O que você pensa sobre isso?

 

R - Desde a década de 1970, os militares repetem este mantra e, incrivelmente, contando com suas unidades de inteligência, de serviços de vigilância e de informações de outros órgãos federais, jamais apresentaram um caso concreto. É uma falsa afirmação. Primeiro, os povos indígenas não possuem “estados” em suas organizações que possibilitem a dominação de outros povos; segundo, suas populações são pequenas e, terceiro, eles possuem mais sentimento de brasilidade do que os chamados brasileiros, pois são os únicos filhos legítimos desta terra. A grande maioria dos brasileiros não têm noção do que é a Amazônia. Alguém já imaginou o tamanho do “abacaxi” que seria tomar conta de uma região com quase 4 milhões de Km2, uma população aproximada de 22 milhões de pessoas, um verdadeiro caos imobiliário, com problemas sociais gravíssimos a serem resolvidos, tanto no meio urbano quanto em regiões de difícil acesso, e uma responsabilidade imensa de preservar a floresta, em meio a todo esse caos? Não creio que algum país, ao menos sozinho, queira enfrentar essa possibilidade. Agora, se o governo brasileiro continuar a menosprezar a preservação ambiental na Amazônia como vem fazendo, poderá provocar sim um movimento pela sua emancipação internacional e até algum tipo de intervenção, contando com o consórcio de vários países.

 

 

10 - E os indigenistas, como ficam nessa história?

 

R - Para mim, Indigenismo, antes de tudo, se traduz por aliança incondicional com os povos indígenas. Os momentos difíceis para eles, como agora, costumam revelar esses aliados, que permanecerão para sempre. Os indigenistas atuais são de muitas vertentes e raízes e não apenas governamentais. Mas também no meio governamental haverá resistência dos indigenistas. De acordo com a modernidade e o estado democrático, eles estão se organizando em associações formais e contestando as ações do governo em instancias parlamentares e jurídicas. Apesar da violência de que são vítimas desde o início da colonização, os indígenas sempre puderam contar com esses aliados. Como os povos indígenas, o indigenismo também prosseguirá.

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