Quem está sendo desacatado

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“Artigo 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa”. É isso que se lê em um cartazinho mixuruca quando chegamos ao hall de entrada de um (H)ospital (G)rande de (P)almas. Mixuruca mas que todos os funcionários públicos do órgão acreditam  ter grande efeito inibidor nos pobres cidadãos comuns que nem sequer têm o direito de se revoltar com o mau atendimento que seus entes queridos recebem por lá.

Já que não posso “desacatar” os coitadinhos em seu local de trabalho, vou externar a minha revolta aqui. A não ser que a censura tenha voltado ao Brasil (e eu já não estou mais duvidando disso), acho que ao menos escrever  eu ainda posso.

Para situá-lo, leitor, meu marido tem um avô de 89 anos, portador da Síndrome de Alzheimer que mora conosco. Para piorar o seu quadro,há cerca de quatro anos ele sofreu um derrame cerebral o que faz com que elenão tenha condições de andar, de se mexer, de falar. Há seis anos está acamado, com total rigidez dos membros. Nos últimos meses, perdeu a capacidade de engolir e sua alimentação é feita somente através de sonda nasogástrica (aquele caninho que enfiam no nariz e vai até o estômago).

Há cerca de três meses, o vô foi acometido por uma pneumonia aguda e precisamos interná-lo imediatamente. Ele estava com apenas 70% da capacidade de respiração e com muito catarro, mas muito mesmo, nos pulmões. Lá fomos nós para o hospital em questão.Foram longos 15 dias de internação.

E aqui começa o meu relato de desacato. Um desacato à saúde pública. Desacato ao direito que todo cidadão tem de receber um tratamento digno e, principalmente, ser tratado com respeito.É sabido que os hospitais públicos são um grande problema no nosso país. Mas, muitas vezes assistimos aos noticiários no conforto de nossos sofás e não fazemos idéia real das dificuldades e sofrimentos pelos quais tanta gente passa a espera de atenção. Afinal, ninguém procura um hospital para dar um passeio, ou tomar um sorvetinho, ou fazer uma fezinha na loteria.

Quando vamos a um hospital é porque precisamos estar lá e, certamente,não temos outra escolha. Eu nem entrava no hospital. Nunca conseguia permissão. Ficava apenas do lado de fora. Lá eu vi pacientes usuários de fraldas ficarem 48 horas sem receber higiene (o cheiro já estava insuportável), 36 horas sem receber qualquer tipo de alimentação (o cara não quis comer na hora que deram então a comida ficou no canto esfriando sem ele poder alcançá-la).

Vi parentes de acidentados serem ignorados como se ignora uma folha de papel usada e sem nenhuma anotação importante. Vi crianças chorando sem parar com ferimentos nas costas, mas que os importantes funcionários diziam estar fazendo manha. Vi macas cheias de sangue ser reutilizadas em outros pacientes (impressionante...parece que ninguém ouviu falar em pano limpo e álcool).

Vi uma equipe de fisioterapeutas deixar pacientes completamente roxoscom os excessos dos exercícios para “ajudar” na melhoria dos movimentos(acho que eles se enganaram e pensaram estar preparando o pessoal das Olimpíadas). Vi médicos questionando familiares sobre se faria alguma diferença confirmar um quadro neurológico do qual não tinham certeza. Vi enfermeiras disputando com veemência uma vaga de acompanhante de internação para poder ganhar um dinheirinho a mais (um extra que os familiares se submetem a pagar quando não têm condições de ficar em tempo integral com o paciente).

Vi seguranças extremamente despreparados e grosseiros no trato com os nada importantes pais, mães, filhos e netos dos pacientes. Vi gente dormindo nas cadeiras do lado de fora porque vieram de cidades do interior e não tinham onde ficar e nem previsão de quando iriam embora.Vi enfermeiras fazendo o papel de “garota de mensagem” dando desculpas esfarrapadas para pacientes que não iriam ser atendidos. E eu vi muita sujeira. Nos quartos tinham aranhas enormes grudadas em suas fortes teias no teto. Vi tanta coisa que preferia ter ficado cega.

Porém, me convenci que cega eu estava antes. Será que devemos nos conformar com o que nos obrigam a engolir como uma verdade absoluta? Será que devemos aceitar uma ameaça velada em um cartaz na porta de entrada de um hospital? Será que nós também não estamos sendo desacatados? Por que devemos obedecer a tudo e todos? Será que se eu reclamar serei uma pessoa má e irei para o inferno? Um funcionário “acorbertado” pelo Estado pode ser desrespeitoso com o ser humano?

Não é preciso conhecer as leis para que entendamos que é criminoso tratarcidadãos que sofrem por doença, seja o paciente, ou seus cuidadores, com descaso. Pode não ser crime nas leis em vigor, mas é crime social, é crime de natureza humana e, cuidado importantes funcionários: esse pode ser um crime contra Deus (vocês poderão arder no mármore do inferno).Infelizmente, o nosso avô caiu da cama outro dia e precisou voltar o hospital. Foram mais dois dias em que ficamos a mercê da “boa vontade” dos funcionários daquele órgão.

E não é que eu vi mais uma! A enfermeira chefe me ligou dando broncaporque nós não estávamos lá. Mas não são eles mesmos não deixam entrar?Ô, moça, vocês se decidam! É triste saber que fazemos parte de uma sociedade composta por arranjos de todos os tipos  (políticos, sociais, financeiros). É mais triste ainda ter consciência de que o Brasil não vai mudar tão cedo porque ainda não temos maturidade e conhecimento suficiente dos nossos direitos. Só que os nossos deveres são cuspidos na nossa cara todos os dias.  

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