Blog da Tum

Memórias de uma manhã de sol que a velhice não levou

Esta é a minha homenagem de hoje para minha mãe. E para todos os que estão perdendo seus pais e suas mães nessa tragédia imensa que estamos vivendo.

Crédito: Arquivo pessoal/Roberta Tum

Uma das lembranças mais antigas que eu tenho da minha infância é de uma manhã ensolarada, na rua Anhanguera, com seu calçamento de pedras antigas que eu atravessava seguindo minha mãe. Nacim ainda não saia de casa. Renata e Nadim não tinham nascido. Elis morava em Caiapônia, 18 dias mais velha que eu.

 

Não sei precisar quantos anos eu tinha, mas sei que ainda não sabia ler. Fui alfabetizada em casa, pela moça que cuidava de mim enquanto minha mãe dava aulas numa escola pública a metade do dia. Quando ela chegava eu já tinha brincado, estudado as primeiras lições e tomado banho para almoçar.

 

Minha infância foi cercada de um amor inexplicável. Meus primeiros anos. A distância de dois quarteirões subindo da nossa casinha até a avenida Goiás parecia infinita para minhas pernas pequenas, mas eu caminhava olhando para minha mãe com a mesma reverência que a moça que cuidava de mim tinha por ela.

 

Dona Lauziranita era uma mulher imponente, bem vestida, bem calçada e perfumada. Caminhava segurando uma bolsa na dobra do braço. O cabelo da minha mãe - ah, o cabelo - sempre bem arrumado...

 

 

Uma vez, eu já devia ter meus nove anos, lembro de uma campanha que os lojistas de Jataí fizeram para o Dia das Mães, com uma mãe em um cartaz. Era ela. Tão linda. Eu me pegava perguntando como minha mãe poderia estar lá naquele cartaz, na cidade inteira. Era assim que eu a via. Não existia outra mãe que não fosse ela.

 

Me lembro dos sábados lá no quintal de casa, quando ela e minha tia Lola, e pelo menos duas amigas, vizinhas lá de casa, se arrumavam com bobes nos cabelos. “A mulher que não é vaidosa é porca”, escuto ecoar pelo tempo a frase que ela nunca deixou de dizer.

 

Para mim, a subida da rua tinha magia e encanto. No primeiro quarteirão depois lá de casa, virando a esquina à direita, era a pequena padaria, de uma porta só, onde eu e meus irmãos, à medida que fomos crescendo, íamos buscar pão, rosca e bomba de chocolate.

 

O pão era baguete e não os pãezinhos que comemos hoje. Baguete de pão francês, enrolada num papel de pão. Um luxo...

 

A primeira lembrança que tenho, no entanto, não é da padaria e seus cheiros, mas da banca de revista, que ficava na mesma rua subindo, e que minhas pequenas perninhas alcançavam com dificuldade, segurando a mão da babá, acompanhando minha mãe. 

 

Que lugar era aquele? Eu era pequena até para alcançar a prateleira onde as revistas ficavam expostas, mas foi ali que aprendi a diferenciar cada personagem pela capa dos gibis: Huguinho, Zezinho, Luisinho. Tio Patinhas. Os irmãos Metralha. O cheiro daqueles gibis, meu Deus. 

 

Daria tudo para voltar no tempo e me ver de novo com eles: minha mãe e meu pai, naqueles anos. Queria só observar de longe, sem interferir em nada, para matar a saudade que me atravessa agora.

 

Era alí que eu ouvia minha mãe conversar e escolher o que ia levar para mim. Com o passar do tempo e as letras se encaixando e tomando forma, minhas leituras mudaram. Passei a devorar os livros da Biblioteca Municipal de Jataí e os romances que ela comprava dos viajantes que passavam lá em casa. Coleções inteiras. A que mais me impressionou foi a da primeira e segunda guerra mundial com as fotos dos soldados mortos.

 

Antes disso, passeei pelas obras de Dumas, que reli tantas vezes: Os três Mosqueteiros, tomos I, II e III. E a sequência novelesca “Vinte anos depois”. Tenho todos guardados, em papel filme, com as velhas páginas amareladas. Uma relíquia. 

 

Minha mãe, ah minha mãe. Como foi difícil seguir seu padrão. Atender suas exigências. Tirar as notas altas que ela queria. Enfrentar a fila da palmatória se viesse nota vermelha na caderneta do Bom Conselho.

 

Hoje vendo seu corpo esquálido, já sem movimento em cima da cama hospitalar que compramos, meu coração se enche de tristeza e lágrimas. Na dependência que ela tem de nós para tudo, especialmente de mim, assoma de vez em quando o mesmo brilho antigo no olhar.

 

Ela está consumindo seus dias com os olhos opacos, de cansaço e inconformismo em viver em cima de uma cama, desde que se agravou a fraqueza nas pernas. Depois do tombo, veio a cirurgia há três anos, placa e parafuso. Depois de três AVC’s isquêmicos e nem sei quantos temporários, seu mundo foi se limitando, se reduzindo.

 

As costelas vão se destacando na fragilidade do colo, antes tão imponente e poderoso. Nos últimos dias, ela tem gritado à noite. Nem com os remédios consegue dormir noites seguidas. Eu, por minha vez, acordo assustada, com o coração na garganta, e saio tropeçando da minha cama até o quarto dela em madrugadas como esta, de hoje.

 

Na maioria das vezes não é nada... É só solidão. O medo de morrer sozinha envolvendo seu coração. Aí ela inventa um motivo para ter chamado. A posição que está ruim e ela não consegue se virar sozinha. O ar que gelou muito e ela está com frio. Ou dor no corpo, que às vezes passa com umas gotinhas mágicas de calmante.

 

O olhar distante nas manhãs, a tristeza de não estar cercada pelos filhos e netos na casa dela – minha mãe sempre prezou sua autonomia – vai consumindo sua alegria de viver aos 82 anos que completou nesta pandemia.

 

Assisto tudo com imensa tristeza e confesso, fico aborrecida comigo mesma quando me pego impaciente com ela e seus gritos na madrugada, quando também me bate a exaustão. É a senilidade que chegou acompanhada de um princípio de demência, alternado com momentos de muita lucidez. 

 

A memória da dona Tita já não é mais a mesma, mas uma vez rainha nunca se perde a altivez.

 

Ela se senta lá na cama com o vestido mais bonito que consegue escolher, cheia de cremes e perfumada. Com um olhar de quem visita as próprias lembranças sem parar. 

 

De vez em quando chora e diz que viu sua mãe, minha avó, falecida em 1979, entrando pelo quarto e sentando na cama dela para conversar.

 

Tem saudades de ser tratada como a criança que já foi um dia. Com o mesmo amor e paciência. E eu, faço o que posso com toda a minha imperfeição...

 

Sinto que em breve esses dias vão terminar e ficará o quarto vazio da presença dela e cheio de lembranças. Temo todas as manhãs encontrá-la sem vida (este papel foi o que me sobrou) e me alimento das memórias de quem ela já foi.

 

A mulher que mais me inspirou na vida. Quem esteve presente nos meus momentos mais difíceis e que me permitiu uma vez, fora de casa, não precisar voltar. 

 

Nos meus dias mais difíceis em Goiânia, 1987, ela pegou o Expresso São Luiz e foi me visitar com seu maior tesouro: as jóias. E me entregou as melhores que tinha para penhorar na Caixa e conseguir pagar aluguel e comida até me estabelecer no Diário da Manhã. Foi assim que rompi meus caminhos mais duros para chegar onde estou. Podendo cuidar dela.

 

Esta noite acordei uma da manhã e não suportei essas lembranças, tantas palavras presas no peito e a vontade de chorar. Minha mãe parte um pouco todos os dias. Só espero honrá-la cada minuto que ela viver. E cuidar dela com o amor infinito que toda mãe merece. 

 

Especialmente a minha, aquela senhora altiva que subia a rua Anhanguera todas as manhãs. Eu olhava para cima e via seu vulto, envolvido numa nuvem de luz, de sol e de amor. É assim que ela ficará gravada dentro de mim quando se for.

 

Taquaruçu, 08 de setembro de 2020.

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