Em 2020 eu queria ter esperança, por Adriano Castorino

Crédito: Edu Fortes

Eu queria escrever sobre ter esperança. Mas me lembrei tanto de uma música de Belchior, 'Galos, Noites e Quintais', de imediato me veio uma sensação de nostalgia, talvez uma melancolia. Mas, quero ter esperança. Pois bem, esperança. O ano que começa é sempre um bom momento para a gente pensar em coisas que desejamos fazer. Sempre coisas grandes, felizes, projetos monumentais. Mesmo que a vida real continue sem a beleza do canto dos galos no alvorecer. 

 

Como será que poderíamos ter esperança? Conheço pessoas que ano após ano rogam a deus suas aspirações, ainda que nada tenha mudado tanto, continuam nessa fé. Outras, mais céticas, são mais pessimistas, e a vida segue, quase sem sobressaltos. Para a maioria das pessoas, no entanto, o preço da vida, da esperança, dos sonhos é sempre mais caro do que possam pagar, entram ano e sai ano, continuam endividadas, angustiadas, exaustas.

 

No ano que se encerra, o ano mais longo como uma noite em claro, deixa uma sensação de que ter esperança é um ato subversivo ou que sonhar é um ato de coragem. Eu queria ter esperança que deus voltasse a ser misericordioso, que deus fosse como eu ouvi na boca de Dom Pedro Casaldáglia, ou na boca de Dom Tomás Balduino. Nunca imaginei deus pegando em armas ou explodindo bombas ou dependendo de defensores. 

 

Eu queria que o ano que começa trouxesse o fim da violência contra as mulheres, que nenhuma pessoa fosse alvejada por ser gay. Talvez fosse possível ir a um baile sem ser pisoteado pela polícia, talvez fosse possível ter um pedaço de terra, talvez. Eu queria que as pessoas que estão sem emprego pudessem encontrar uma ocupação e com esse trabalho pudessem viver e sonhar. Eu queria que as várias nações indígenas pudessem viver em paz, que quilombolas e ribeirinhos e assentados e trabalhadores rurais pudessem viver em paz. Viver em sintonia com as matas, os rios, os pássaros, viver e viver.

 

Eu queria que o ano fosse bom para mim e que sendo bom para mim fosse tão bom para todas as pessoas, que houvesse um gráfico na economia que demonstrasse que todos podem ganhar. Eu queria que houvesse menos ricos e menos pobres, ao mesmo tempo. Eu queria que a gente entendesse que não se pode ser feliz vivendo nababescamente num condomínio de luxo tendo uma enorme favela, com pessoas vivendo miseravelmente.

 

Não sei porque teimo em desejar essas coisas de igualdade, equidade, justiça social. O ano que termina me mostra que quase milhões de pessoas foram jogadas na extrema pobreza enquanto discutimos as frivolidades do governo. Talvez eu siga, ano após ano, nessa minha fé, uma fé em ver todas as pessoas tendo um mínimo de dignidade. 

 

Isso me deixa assim, como a música de Belchior, um tanto melancólico. Eu sei que ser pobre é uma coisa tão cansativa, é tão desolador, tão humilhante, porque aos pobres sempre só restam as migalhas. Ainda continuo sonhando, desejando profundamente, que é possível vencer a pobreza. Jamais seremos felizes pobres. O fim da pobreza não é feito com a ideia de riqueza. Para vencer a pobreza teremos também de erradicar a riqueza.
 

Eu queria ter esperança. Eu queria mesmo. Eu queria que o estado fosse gerido com a finalidade de erradicar a pobreza. Não sou triste, apenas não consigo ser feliz sabendo que há tantas pessoas que não podem planejar minimamente a vida no ano que começa. Não podem porque não tem dinheiro, não tem trabalho e talvez quase nem esperança tem mais.

 

Professor Adriano Castorino

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