Lamadrid

Para mim foi um choque a notícia de sua morte. Faleceu o professor, o geógrafo, o geólogo. Faleceu uma pessoa que era brilhante e inteligente.

Crédito: Reprodução/Redes Sociais

Quando eu estive em Havana, Cuba, há algum tempo, eu já conhecia Lamadrid, fui aluno dele em 2009, ano memorável na minha vida. Com esse maestro, alto, fala grave, sotaque carregado, aprendi tantas coisas sobre o sonho utópico da revolução. A revolução sempre é um sonho, sempre. Lamadrid foi meu professor, um professor que conseguiu me ensinar sobre os mistérios das rochas, das montanhas, a geologia como poesia, talvez ele até soubesse conversar com as pedras. Lamadrid era uma ambientalista monumental. Aprendi a teoria da pegada ecológica, a escala geográfica, a cartografia como uma possibilidade de diálogo com o espaço.

 

Também aprendi que a educação, essa mesma que tentamos fazer como espaço de transformação social, deveria ser rigorosa, conceitual. Por isso, nas aulas ele cobrava densidade, tínhamos que ter densidade, referências, porque senão seríamos engolidos pela simplificação das coisas. Lamadrid era sempre amável mesmo que rígido, não sei explicar como era isso. Carregava em si essa necessidade de uma alfabetização científica, talvez porque reconhecesse que a mudança mais necessária mesmo só venha com solidez, como as rochas sólidas.

 

Os enormes debates havidos entre mim, Lamadrid e o Elson, eram coisas que poderiam durar meses. Nós dois, eu e Elson, alunos dele, naquele ano de 2009, no mestrado em Ciências do Ambiente. Um dia falamos da existência de Deus, ele nos contou como ele era quando aluno da graduação em Havana. Como Deus poderia existir ao mesmo tempo que as rochas davam testemunhos de eras tão antigas? A geologia, ele gostava de falar, é como se a gente conhecesse a escrita da natureza. Talvez seja mesmo, talvez a natureza escreva seu evangelho nas rochas. Talvez Deus fosse mesmo uma rocha ou pelo menos, como debatíamos, a natureza fosse sagrada e o capitalismo a dessacralizou.

 

Lamadrid também falava comigo sobre política. Quando Donald Trump foi eleito tivemos uma longa conversa. O capitalismo é um sistema parasitário, muchacho, dizia com sua experiência. Capitalismo parasitário. O quadro brasileiro também ocupava nossas conversas, mas ele era mais reservado nos comentários. Como estrangeiro, preferia mais a discrição em temas de política doméstica. Mas era visível em seu rosto o desencanto com o que agora vivemos, tempos de terraplana.

 

Para mim foi um choque a notícia de sua morte. Ele morava na minha rua, sempre o via sair no seu Volkswagen Gol, vermelho. Há uns dias não o vi na rua de casa, pensei que houvera apenas recluso. Não era só isso, estava internado, era o covid, implacável, impiedoso. Faleceu o professor, o geógrafo, o geólogo. Faleceu uma pessoa que era brilhante e inteligente. Para mim o que dói mais é a indignidade desse momento, a pandemia em nosso contexto, não me permite nem ao menos o direito de ir ao velório de uma pessoa tão importante na minha vida.

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