O Morro dos 500 mil mortos e a Rua 1

Rua 1. De uma forma ou de outra esse é o local por onde a gente começa. Ele pode representar a perda de uma pessoa amada, o SAMU que chegou muito tempo depois, um filho pra quem faltou o remédio bem na hora da convulsão, a segunda dose atrasada, a decisão de mudar tudo na vida, a mulher reclamando que poderia ter tido uma vida melhor, o gay desfigurado tentando dizer que seu algoz foi aquele com quem morava há anos. O ponto de partida é a Rua 1. Mas é na curva. É na curva onde tudo acontece.

 

“O Dono do Morro - Um Homem e a Batalha pelo Rio”, do Misha Glenny (Companhia das Letras) é minha Rua 1 nesse texto. Não como resenha, mas como fragmentos metaforizados. Na verdade uma forma de me agarrar a algo. Falo dele aqui pra dizer que é um dos melhores livros que já li na vida. Para além de não biografar o “Nem – ex-chefe do tráfico da Rocinha”, Glenny expõe o caos que as milícias e polícias paralelas transformaram o Rio de Janeiro, a partir, e não tão somente, da subida e descida de um homem num morro carioca.

 

Onde nos perdemos tentando nos achar ou onde nos achamos tentando nos esconder? Você lembra o seu ponto de partida para estar onde você está agora? Em qual momento você decidiu ignorar a subida, o deslize, a rasteira e desceu, pela curva? Eu penso em mudar todos os dias, sabe, tipo daqui a alguns anos fazer uma lipo LAD ou uma rinoplastia, ainda não sei por onde começar. Tá tudo tão esquisito, nunca mais vi ninguém.

 

Antes mesmo dos 500 mil mortos por conta de um vírus aliado à irresponsabilidade e estupidez de um governo que se negou começar pela Rua 1, lambuzando-se em sua soberba, ódio e ignorância, já não estava tudo bem. O bom, até onde lembro, é que a gente podia sair, encontrar os amigos, abraçar, trocar fluidos de alegria, acordar com aquela ressaca infame no domingo e, da cama mesmo combinar com a turma pra onde iríamos dali a uma hora.

 

Levanto pro banho e começo a lembrar:

 

Ligaram na madrugada. Tinha acabado de chegar em casa, comido alguma coisa e deitado. Celular tocou. Número não identificado. Oi? Aqui é do hospital. Quem? Você conhece algum Júnior? Quem? A gente vê que é uma mulher, mas chegou aqui homem. Pensei: será alguma travesti amiga que eu já tenha ficado...essas coisas. Falei que não, por quê? É que ele não resistiu. O corpo dessa pessoa está aqui e o hospital só encontrou esse número de celular no bolso do casaco dele. Não sei quem é não, senhora. O que a gente faz com o corpo? E eu sei?! Você é um contato... conhece algum familiar? Não, minha senhora. Conheço não! Eu tô com sono, por favor! Desliguei.

 

Do banho vou pra cozinha.

 

Rolo a tela dos noticiários e vejo a manchete que o Brasil ultrapassou as 530 mil mortes pela Covid-19. Falei que pena e continuei a rolar. Vi: “Corpo de homem com seios não resiste e é tido como indigente”. Meu Deus! Puta que pariu, mais uma! Absurdo isso! Penso em Antônio Francisco Bonfim Lopes.

 

Mataram Renata. Roberta. Dandara. Paulo. Samuel. Claudio. Ana. Jonny de novo. Saulo. Camila pela terceira vez. João ficou sem as pernas. Raul. André. Adriano porque estava de saia. Soraya. Shirley. Thalita. Carol. Dr. Roberto do Tribunal. Shana de Bourbom.  Marsha P. Johnson. Aquele juiz bem caladinho, lembra? Samantha Feeling.  O procurador. O desembargador também, o secretário, o gari, o governador, a Rita...

 

Vocês estão onde? Já tô pronto.

Sabe não?

O quê?

Mataram o Júnior, aquele novinho, lembra?

Acho que sim. Que pena!

Pois é. Foi covid.

Poxa! Pensei que tivessem matado só porque o cara era viado!

 

Mas vamos pra onde?

Não sei.

Tem uma lista aí que deve tá em cima do morro.

Quem tá lá?

Antônio Francisco Bonfim Lopes.

Uai, o Nem!

Sim. Tá com covid também. E ruim. Aguardando vaga.

Falou de mim pra ele?

Não.

E onde você está agora, porra?

Rezando.

Onde?

Na Rua 1. Desce.

Como desço desse morro? Será que consigo?

 

Vou te passar a localização!

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